dezembro 21, 2004

um toque no real

Saio de casa, dou um pontapé numa pedra que sem culpa nem rumo se deixa rolar pela calçada, levanto os olhos ao dia que se deixa amanhecer suavemente por entre os edifícios velhos e sorrio. Que paradoxo delicioso.

Ando dois quarteirões, atravesso a rua e, sem notar as crianças que brincam ao meu lado, estagno junto ao pequenito jardim que todos os dias me saúda com um bom dia cheio de orvalho.
É ali que te vejo. Todos os dias te vejo. Estás sentada, cabelos negros e escorridos a repousar em cima dos ombros, duas azeitonas a fazer de olhos e dois pedaços de vermelho carnudo a fingirem-se lábios.

Hoje, como todos os dias, como todos os momentos, como todas as sensações, hoje é como sempre. Olho-te, flutuo-te e o jardim dissolve-se nas casas, e as casas numa tela desfocada, e do céu chovem panos negros que esquecem tudo excepto o tu e o eu e o nós que tem por força que acontecer.

Agora já não há nada. Já não estás a ler um livro, por baixo de ti já não há um banco, nem o teu cabelo se salpica dos pedacitos de flor que pingam das árvores. Mas tu não sabes isso e então continuas na tua posição de sentada - suspensa no ar - com as mãos viradas para cima e a olhares atentamente o teu colo. O desejo... o infinito desejo de te tocar. Ajoelho-me a teu lado. Claro que não me vês e continuas a ler o livro que não existe sentada num banco que já não é.

Como és bonita... o negro dos cabelos a pintar o branco da face, o olhar imenso que deixas deslizar pelo livro que não estás a ler, o nariz ligeiramente arrebitado, os lábios que continuas a humedecer com esse pedaço de morango a que chamas língua, a forma como pendes a cabeça para a esquerda, como um sino empenado, o traço do teu queixo à orelha, o pescoço limpo e suave e incrivelmente beijável... oh pudesse eu atravessar-te com o beijar; deslizar a minha mão da tua testa ao teu ombro, segurar-te com força e fazer-nos voar...

Noto-me, como hoje, como ontem e como sempre, com um sorriso estúpido de deleite, parado à boca do jardim, com crianças a brincar à minha volta. Uma delas chega perto de mim, dá-me um pontapé e eu, sem culpa nem rumo, deixo-me rolar pela calçada.

Filipe Goulão