novembro 26, 2004

e talvez

e talvez seja por isso
porque eu penso
talvez seja por isso
que eu pago
os pecados que não cometi
talvez seja por isso que fico
com as dores que não me pertencem
talvez seja por pensar
que tenho tantos talvez
sei que o que sei nada é
e a única coisa que julguei saber
se esfumou no ar
quebrou-se em mil pecados
e partiu ao luar.


Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sozinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer coisa
Que tem que ver com haver gente que pensa...

Que pensará o meu muro da minha sombra?
Pergunto-me às vezes isto até dar por mim
A perguntar-me coisas...
E então desagrado-me, e incomodo-me
Como se desse por mim com um pé dormente...

Que pensará isto de aquilo?
Nada pensa nada.
Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?
Se ela a tiver, que a tenha...
Que me importa isso a mim?
Se eu pensasse nessas coisas,
Deixaria de ver as árvores e as plantas
E deixava de ver a Terra,
Para ver só os meus pensamentos...
Entristecia e ficava às escuras.
E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu.


Alberto Caeiro

E assim, penso e não tenho nada.

novembro 25, 2004

Gaia

tu que também choras
a desconsideração dos Homens
aceita deste que foi pequeno
príncipe, um pedido.
abre em teu manto fenda
em que eu possa me esgueirar
faz-me da minha semente àrvore
para que os amantes se deitem
à minha sombra, para que eu
não perca o sentido do que é amar.
faz de mim grande e frondosa
para que se algum dia fui amado
e em meus braços encontraram
o conforto tão ansiado
possam de novo ter, em meus ramos
protecção para quando magoados.
faz de mim forte, para que aguente
o embate dos Invernos
que enquanto homem teimaram
em trazer mágoas, passem agora
por mim como leves brisas de Verão.
faz de mim suave como as cores da Primavera
forte como as do Outono,
deixa que escrevam em mim provas de amor,
do amor verdadeiro, daquele que perdura
para além da sanidade e da vaidade.
deixa-me ser pai de filhos de tua graça
deixa-me pagar com vontade o que te rogo
concede-me depressa esta benção
antes que em homem me deixe levar pela morte.

novembro 23, 2004

Herberto Helder

Não te queria quebrada pelos quatro elementos.
Nem apanhada apenas pelo tacto;
ou no aroma;
ou pela carne ouvida, aos trabalhos das luas
na funda malha de água.
Ou ver-te entre os braços a operação de uma estrela.
Nem que só a falcoaria me escurecesse como um golpe,
trêmulo alimento entre roupa
alta,
nas camas.
Magnificência.
Levantava-te
em música, em ferida
- aterrada pela riqueza -
a negra jubilação. Levantava-te em mim como uma coroa.
Fazia tremer o mundo.
E queimavas-me a boca, pura
colher de ouro tragada
viva. Brilhava-te a língua.
Eu brilhava.
Ou que então, entrecravados num só contínuo nexo,
nascesse da carne única
uma cana de mármore.
E alguém, passando, cortasse o sopro
de uma morte trançada. Lábios anônimos, no hausto
de árdua fêmea e macho
anelados em si, criassem um órgão novo entre a ordem.
Modulassem.
E a pontadas de fogo, pulsavam os rostos, emplumavam-se.
Os animais bebiam, ficavam cheios da rapidez da água.
Os planetas fechavam-se nessa
floresta de som unânime
pedra. E éramos, nós, o fausto violento, transformador
da terra

Nome do mundo, diadema.

novembro 21, 2004

e hoje?

e hoje, mais um
punhado de solidão
vazio no peito
de quem não sente o coração.

"e cada qual tem o que merece"
eu choro, e tu?

novembro 18, 2004

quem acende

e assim cantava o pequeno principe
agora escondido do céu,
do olhar de quem soube
como olhá-lo

Quando me olhas
os meus olhos são chaves,
o muro tem segredos,
o meu temor palavras, poemas.
Só tu fazes da minha memória
uma viajante fascinada,
um fogo incessante

Alejandra Pizarnik

novembro 16, 2004

e assim sou

pequeno nada cheio
de tantas mãos
que me percorrem o corpo
corpos que se desenham no meu
assim me fazem, o que não sou.
olhei em busca da tua, alma,
como quem te procura no teu mais intímo
a cada momento e desde o primeiro
foi a minha, que nos teus olhos pintei.

novembro 08, 2004

toco e

tudo o que toco
morre
toque de midas negro,
ouro dejecto.

quero tocar
sem matar
quero sentir
sem definhar.

novembro 07, 2004

Maria do Rosário Pedreira, Nenhum nome depois

Cheguei tarde, e os que sabiam de mim
notaram que o meu corpo já não me
pertencia. E perguntaram. Porque ardia
a tua boca nos meus lábios mais do que
a fogueira do segredo, respondi-lhes

que o céu, afinal , era mesmo azul, e o
verão uma estação maior que o tempo,
e o tempo nada se o teu corpo estava
junto desse corpo que todos já sabiam
que não vinha comigo - e que Deus,
Deus fechava os olhos e existia. Riram

os que te tinham conhecido noutra noite
com outra pele vestida; os outros foram
para muito mais longe que o seu rosto
magoado dizer ao próprio ouvido que eu
mentia. Mas os que ainda queriam saber

de mim pediram-me que lhes contasse
quem eras, o teu nome. E eu mordi essa
boca vermelha que deixara contigo para
não ter de dizer que nem o perguntara.

novembro 02, 2004

e no dia dos meus anos

enquanto a alma ansiava pelo calor dos seus braços, e os meus se queimavam no calor do metal, alguém se levantou e no alto do seu metro e vinte cantou,

De manhã, que medo, que me achasses feia!
Acordei, tremendo, deitada n'areia

Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.
Mas logo os teus olhos disseram que não,
E o sol penetrou no meu coração.

Vi depois, numa rocha, uma cruz,
E o teu barco negro dançava na luz
Vi teu braço acenando, entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia, que não voltas:
São loucas! São loucas!

Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor, me diz qu'estás sempre comigo.
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor, me diz qu'estás sempre comigo.

No vento que lança areia nos vidros;
Na água que canta, no fogo mortiço;

No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo.
No calor do leito, nos bancos vazios;
Dentro do meu peito, estás sempre comigo.

Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor, me diz qu'estás sempre comigo.
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor, me diz qu'estás sempre comigo.

Barco Negro - David Mourão-Ferreira

e os meus olhos sentiram o molhado das lágrimas, o coração bateu, mais forte.

novembro 01, 2004

só mais um, mas não igual

e é hoje, mais um
todos os anos acontece
uns melhores outros diferentes
sinto a tua falta, da tua voz
e da tua figura a chamar-me para jantar
sempre tu, ali à porta como quem julga
e cobra maravilhas, de mim,
aquele que nada tem e pouco dá
mas eras tu que me conhecias
eram os teus braços que me davam força
me empurravam, obrigavam
faziam ver quando os olhos queriam fechar
e apenas o irreal queriam ver
não estás aqui agora
para olhar em mim e veres alguém,
que não eu,
pois os meus olhos brilham
e reflectem no mar, a noite fria
de quem abraça o calor de viver.

e sinto noutros braços o abraço forte.